quinta-feira, 24 de janeiro de 2008
TEMBREABREZI
E de cruzar o grande oceano
Lá, onde a longa onda se quebra na praia
E onde o sol amanhece as planícies douradas
Aí fica o lugar a que posso chamar casa.
GED
SAUDADE
Que faz o meu pobre coração cavalgar
Pelas aldeias e cidades do meu país ?
Que dor tão forte é esta ?
GED
A MORTE DO POETA
Uma mulher solitária dançava
Nua
Um brilho intenso no seu olhar
Escorria pelo cabelo, ao bailar,
A lua
Olheiras cavando fundo o rosto
Rugas de um enorme desgosto
Só seu
Nesta noite ninguém dorme
A voz do nosso mestre, enorme
Morreu
Os versos não mais explodirão
Ficou a funda, inerte, na mão
Quieta
Já ninguém os poderá lançar mais
Com a energia e a certeza vitais
Do poeta.
GED
A GRANDE VIAGEM ( Nos anos do meu amigo Manuel )
Um grande, muito grande amigo meu
Embarcou, largou as amarras e partiu
Para a segunda parte da grande viagem
Não foi ele que decidiu, apenas cresceu
Mas partiu mais rico, com tudo o que já viu
Na despedida celebrada, estiveram os amigos
E o meu amigo Manuel, chorou
Mantém ainda essa rara capacidade de amar
Connosco sentiu que desapareciam os perigos
E com uma alegria renascida, zarpou
Aproveitando o vento de feição, para navegar
A primeira parte da viagem foi dura
Com períodos de acalmia e temporais medonhos
Lutou e pelejou como qualquer marinheiro faz
Enfrentou ventos, marés e a noite escura
O meu desejo maior é que encontre os sonhos
E que seja uma grande viagem em paz.
Um grande abraço.
Coimbra, 22 de Janeiro de 2001
UM DIA...
Vou colocar um bouquet de flores
Flutuando nas águas do nosso rio.
É garantido que o colocarei, juro
Vermelhas, azuis, de todas as cores
Vê-las-ei afastar-se, terei um arrepio.
Recordarei todos os peixes que pesquei
Todos os jacarés repousando nas águas
Todas as aventuras em que me envolvi.
Recordarei os amigos com quem andei
Todas as mulheres, sem qualquer mágoa
Recordarei toda a vida que então vivi.
Depois, calmamente regresso ao Cubal
Não acreditando ainda, que voltei.
Cruzam-se comigo, fantasmas do passado
Cada esquina, cada casa, cada quintal
Murmuram tantas histórias que já contei
Ainda assim, permaneço sereno, calado
À minha volta, há um silêncio quente
E o sol desce lentamente, vermelho
Espalhando sombras nos imbondeiros
A saudade invade-me, sempre crescente
E sinto-me agora terrivelmente velho
Só, sem nenhum dos meus companheiros
Ficarei algum tempo, ainda
Olhando em redor, vendo o tempo recuar
Adiando a inevitável despedida.
Um último olhar à minha terra linda.
Finalmente, voltarei as costas, devagar.
Rumo ao que resta da minha vida.
Um dia
Vou colocar um bouquet de flores.
GED
sexta-feira, 18 de janeiro de 2008
EU
Em todos os caminhos por onde andei
Em todos os lugares que vi ou sonhei
Na busca dos meus pedaços dispersos
Apenas encontrei fragmentos de versos
Dos poemas lindos da minha infãncia
Desfeitos nas saudades e na distância.
Eu,
Olho e vejo-me agora tão incompleto
Tão incapaz de sentir qualquer afecto
Por uma terra que nunca será a minha
Por uma lua que me parece tão sozinha
Por um poema que não me diz nada
Sou um vagabundo no meio da estrada
Eu,
Caminho solitário, na berma do mundo
Buscando e rebuscando bem no fundo
As forças que necessito para continuar
Energia vital suficiente para equilibrar
O meu pendulo sideral tão desalinhado
A minha vida que teima passar ao lado
Eu,
Alinhavo penosamente o ritmo dos dias
Somo uma a uma, muitas horas vadias
Numa matemática alucinante e sem fim
Conto cada dia que não conta para mim
Espero paciente os sopros do vento sul
Trazendo cheiros do meu mar tão azul
Eu,
Aguardo pacientemente um tempo novo.
GED
PÁTRIA MINHA
Naquele preciso momento
O rio da História tocou em mim
Envolveu-me num sentimento
De que só podia ter sido assim
Naquela fracção de segundo
Naquele preciso momento
Forças siderais se conjugaram
Estrelas brilharam no firmamento
Rota segura das naus que chegaram
Naquela fracção de segundo
Naquele preciso momento
Séculos antes de eu me conhecer
Os deuses criaram um encantamento
Daquilo que não era mas viria a ser
Naquela fracção de segundo
Naquele preciso momento
Na foz do grande rio tropical
Colocaram o padrão do achamento
Ficou séculos ali como um sinal
Naquela fracção de segundo
Naquele preciso momento
O grande Cão olhou o céu sem fim
E viu claramente escrito no vento
Criara uma pátria só para mim.
GED
O MEU BARCO
Dentro do meu próprio peito
Raramente ancorado no cais familiar
Quase sempre sulcando viagens
De sonhos interiores que não viajei.
GED
DRAGÕES
Sem espaço para solidões ou desesperos.
No calor das fogueiras queimam-se histórias de tempos antigos.
Pela frente, ainda tantas histórias para contar!
GED
quarta-feira, 16 de janeiro de 2008
REGRESSO
Pulsando debaixo dos meus pés
Uma vida e um mar de tempo
Latejando a mesma dor
Muitas vidas depois
A noite incendiando-se
Em Cruzeiros há muito conhecidos
Faúlhas na noite de breu
Apontando os rumos do sul
Silêncios enormes e espessos
Nas anharas até ao horizonte
Cada passo enterrando-se
Violentamente no solo
Vontades interiores de criar raízes
O olhar brilhando
Os tons de dias felizes
Alma lisa, preguiçando mansamente
Na sombra de mulembas e imbondeiros
Fundo-me nos basaltos negros
Que dançam lentamente na paisagem
E olho em redor
Cacimbos arrepiando a pele
Pastores comandando gado
Mulheres batucando andares
Meninos tecendo teias de futuros
Fogueiras nocturnas
Queimando histórias antigas
Um bouquet de flores
Nas águas cintilantes do meu rio
Flutuaram até ao horizonte
Navegando promessas cumpridas.
Tantas vidas depois
Retornei a este chão
Que reconhece cada passo meu
Seguro, renegando solidões
Terra minha, finalmente em paz
Voltarei sempre
Até um dia...
GED
LÁGRIMA DE PRETA
Pela face daquela mulher de cor
Um rasto líquido vincando rugas.
Libertou-se no espaço
E, explodiu violentamente no chão
Em mil cristais de dor.
Cada cristal, uma lembrança
Uma agonia de esticar a alma
Ameaçando estilhaços.
Um filho morto de cada vez
Chorando todos um por um.
O desejo da morte que não vem
Caminha só, sem destino algum
Por esta pátria doida, alucinada
Cruzando-se com outras lágrimas
Engrossando o mar que nos pariu
Ondas vermelhas prenhas de sangue
Rugindo numa calema tresloucada.
Tréguas temporárias, muito poucas
Só quando o sono liberta os sonhos.
Repousa e incendeia-se serena
Pelo seu mundo de antigamente
Desfeito todos os dias
No instante em que acorda.
GED
VAMOS...
Um dia ela disse-me
Vamos
Não perguntei para onde
Pedi-lhe apenas que colhesse flores
E as levasse
Seguimos estrada fora
De mãos dadas
Sem nada que nos pertencesse.
Apenas as flores
E um futuro para construir.
GED
TUDO MUDA
Tudo muda
Há cegos que conseguem ver
Há quem fique cego, com boa visão
Há pessoas presas nas ruas
Vive gente livre na prisão
Tudo muda
A brisa da tarde pode ser furacão
O lobo pode tornar-se cordeiro
Até o dia se muda para a noite
O homem de paz vira guerreiro
Tudo muda
O menino torna-se homem
A lua nem sempre é igual
Há espingardas com flores
O tiro nem sempre é fatal.
Tudo muda
Os amigos nem sempre o são
A vida desfaz-se na morte
Podemos estar sós no meio da multidão
No meio do azar há por vezes sorte
Tudo muda
Só não há-de mudar nunca
O amor à minha pátria doce e quente
Hei-de permanecer imutávelmente fiel
À minha terra e à minha gente.
domingo, 13 de janeiro de 2008
PLANETA AZUL
Pulsam no tempo primitivo dos druídas
Runas tão antigas, mágicas, poderosas
Rasgões na pele envelhecida da terra
Ameaçando vidas, todos os dias perdidas
No horizonte, mortes espreitam silenciosas.
Deveríamos saber interpretar os sinais
Vísiveis no corpo magoado do planeta
Uma árvore caída, um odor na aragem
Uma espécie desaparecida, talvez mais
Nos rios e lagos, a água escorre violeta
Feridas em carne viva no coração do mundo
Chagas purulentas, dolorosas, ameaçadoras
Fumos densos, desalinhando o pêndulo sideral
A caminhada longa para o abismo profundo
Visões permanentemente loucas e redutoras
Ninguém surge para decifrar as antigas runas
O planeta esgotando-se em ruínas fumegantes
A morte espalhando o seu manto tão sombrio
O mar enraivecido galgando as grandes dunas
Ventos em turbilhões ciclónicos, arrepiantes
E finalmente um planeta mudo, vazio, frio.
Gavião
RIOS
Correm-me rios nas veias
Muitos lhes conheci já na foz
Rios gordos desabando no grande mar
Outros encontrei nos caminhos
Rios de sim e não
Rios suficientes
Vadiando águas em festa
Nunca conheci pequeninos
Não perguntei
Vi rios amigando com outros rios
Rebolando nas pedras
Engravidando margens
Conheci rios de ser feliz
Deixei-me levar
Rios com cais
Atracando barcos e vidas
Rios doces, cheirosos
Tresandando a rosmaninho
Rios de memórias
Correndo ao contrário
Rios de permanecer
Acabei por ficar
GED
ALMA DE MAR
A minha alma é feita de mar
Desaguando todos os rios
De águas nunca passadas.
É feita de grandes sóis vermelhos
Mergulhando no mar oceano
De pumumos e catuites
E zonguinhas zunindo no ar
Bicos de lacre e siripipis
De milho e massambala
E do chão vermelho
Destilando perfumes alucinados
De massarocas e dendém
De tchinganges levantando poeira
De trovoadas e relâmpagos imensos
E de chuva bravia explodindo na terra
De matrindindes e lagartos de fogo
De bichinhos solidamente vermelhos
Anunciando o fim de cada aguaceiro
De praias sem fim
E ondas traçando alinhavos na areia
De goiabas e mangas e fruta pinha
Derretendo sabores irrrepetíveis
De cubatas e sambos de gado
Amanhecendo em cacimbos serenos
De matas densas, silenciosas
Onde nos perdemos e encontramos
De imbondeiros solitários
Que sempre me acompanham
Do churrasco de galinha do mato
E bolas de pirão comidas à mão
Escorrendo óleo de palma nos lábios
De rios, de todos os rios
Mesmo os que correm na memória
De iniciações e namoros únicos
Do primeiro beijo às escondidas
De maboques e missangas coloridas
Das argolas enroladas nas pernas
Batucando todos os andares
Marcando ritmos de encanto e vida
De comboios mala furando a noite
Transportando mercadorias e sonhos
A minha alma vagueia nas saudades
Na minha alma vive um país.
GED
A MINHA TERRA
Apenas gostaria de o ter escrito. Foi-me enviado por um grande amigo e, tocou-me bem fundo.
Quando te disse
que era da terra selvagem
do vento azul
e das praias morenas...
do arco-iris das mil cores
do sol com fruta madura
e das madrugadas serenas...
das cubatas e musseques
das palmeiras com dendém
das picadas com poeira
da mandioca e fuba também...
das mangas e fruta pinha
do vermelho do café
dos maboques e tamarindos
dos cocos, do ai u'é...
das praças no chão estendidas
com missangas de mil cores
os panos do Congo e os kimonos
os aromas, os odores...
dos chinelos no chão quente
do andar descontraido
da cerveja ao fim de tarde
com o sol adormecido...
dos merenges e do batuque
dos muquixes e dos mupungos
ds imbondeiros e das gajajas
da macanha e dos maiungos.
da cana doce e do mamão
da papaia e do cajú...
tu sorriste e sussurraste
'Sou da mesma terra que tu!'
Ana Paula Lavado
CIO DA TERRA
Toda a noite
Escorreu chuva pelas paredes do céu
Ainda há lágrimas na vidraça
Lá fora
Levanta-se um vapor denso
Cio da terra
Rios tropeçando nas margens
Navegando lamas e canaviais
Pressa de chegar
Anúncio de tempo novo
Preparos de lavrar e semear
Abundâncias adiadas
Agora é hora de filhos novos e borboletas
De pastores comboiando gados
Circuncisões e puberdades
Agora, mesmo agora
Mulheres jovens da casa do meio
Silêncios cúmplices na noite
Fogueiras de aquecer e conversar
Agora
Tempo de kissangua e hidromel
Batuques ritmando vidas
Entrelaçam-se olhares límpidos
Segredam-se juras e alembamentos
Sacrifício do mais sagrado animal
Hora de deuses e kiandas
Agora
É tempo de respirar
GED
CRUZEIRO DO SUL
Sentado na areia quente, alongo o olhar
Para a lonjura diante de mim
A noite violeta estende-se mansamente
Já se vê Orion e o olho vermelho de Marte
E a Estrela Polar brilhando intensamente
Procuro o Cruzeiro do Sul em vão
Companheiro de farras e insónias
Não está lá, só nos meus sonhos
Olho de novo para o meu coração
Com a certeza de que os céus da minha pátria
Continuam a existir
Penso em Copérnico
E em como o odeio por ter razão
A terra é redonda
E o meu céu, não o consigo ver
Mas sei que existe
Para lá do horizonte
GED
BAILES DA VIDA
Muito recentemente
Estive com um velho amigo
Companheiro sempre presente
Em todos os bailes da vida
Voz mensageira de um país
Afagando ternamente a raíz
Das cores e sons antigos
Ah! Canta Brasil
Canta pela voz telúrica
Do teu grande viajante
Desperta
O caçador que há em mim
Continua a ensinar-me
Que há momentos assim
Para viver e morrer de amor
Leva-me contigo
A salvar todas as amazonias
Todos os deserdados do mundo
Mas no fim de tudo
Quando já nada mais restar
Quando a alvorada chegar
Deixa-me ficar calmamente
A ouvir-te.
GED
SARA
Vi-a no momento exacto, em que pôs a cabeça de fora.
Alguns segundos depois, fez-se anunciar berrando a plenos pulmões.
Aconteça o que acontecer, fui o primeiro a dar-lhe a benção. Não estava sózinho, no entanto. Os meus pais e o meu irmão estavam lá.
Só por isso, sinto-me muito feliz.
Depois, porque sei que a família dela é vastíssima, fiquei descansado.
Tocaram os tambores e toda a tribo já sabe que tem mais um membro para cuidar.
Pode vir a mudar os destinos do mundo.
No porenquanto, piscou-me o olho, sem o pai ver. Fiquei a saber que é do Benfica.
É, nasceu a minha neta.
Um abraço
CONSTRUÇÃO
Um dia vou construir um tempo
Sereno, indestrutível, transparente
Sem distâncias nem oceanos
Tempo de saciar todos os amores
Sem tempo.
Rios grávidos e feiticeiras
Brilhando nos luares
Arrastando remorsos e solidões
Tempo de alinhavos de fim de tarde
Um dia vou construir um tempo
Todos os rios serão foz
Flutuando lentamente alucinações
E maravilhas
Cheiro permanente de rosmaninho
Palavras exactas, da casa do meio
Carregando poemas nunca escritos.
Mar adentro em velas marinheiras
Um dia vou construir um tempo
Sereno, indestrutível, transparente
PALAVRAS SOLTAS
De vez
Nascem
Inventam asas nas altas nuvens
Desabando depois em fragor liquido
Na terra poeirenta e vermelha
Ou, pousam mansamente
No risco vermelho do horizonte.
Pulsando sempre no ritmo africano
Que comanda o meu andar
Consigo ver de novo
A dança dos girassóis
Brincando com a luz
Rios gordos marcando rumos
Mulheres feiticeiras ensaiando o passo
Incendiando almas
Dragões esvoaçam nas fogueiras
Queimando histórias
De vez em quando
Nascem palavras soltas
Teimosamente rumam a sul
UM DIA...
Que há um tempo certo de morrer
Um dia a cidade vai estar vazia
O meu bando voou para lá das cordilheiras
Sobram fantasmas de amores e desamores
A minha vista cansada
Já não atinge as montanhas distantes
As cabaças de kissangua estarão secas
Os girassóis na planície já não dançarão
Rios velhos sulcam-me a face
Terei de caminhar sózinho
Muitas vezes dou comigo a pensar
Que há um tempo errado de viver.
REDUTO FINAL
De todas as impurezas
Até só restar
Um punho fechado no peito.
Um pequeno pássaro azul.
Pelo caminho deixei
Almas desatentas
Invejas alucinadas
Problemas supérfluos.
Abandonei encruzilhadas
Reneguei amarguras
E outras solidões.
Sou finalmente GED.
VIDA
Lagos azuis, incendiando os oceanos
Saia de cetim, anunciando promessas
À volta meninos de rua, dançam no ar
O ar, tem cheiros de sabores profanos
Dois namorados olham-se sem pressas
Descemos a avenida, num raio de luar.
ÀS VEZES...
Vezes demais
Sempre
Rigor geográfico da alma
Ponto cardeal fixando amarras
Mar Atlântico sentido daqui
Calemas de Marços idos
Poeira da infância, ainda por assentar
Cruzeiro sempre pressentido
Nestes céus ocidentais
Vozes de poetas
Inventando rãs e silêncios
Dançam girassóis na planície
Imbondeiros cobrem-se de neves
Acerto o meu relógio
Nos meninos que brincam a sul
Cheiro casuarinas e acácias
Bicos de lacre e zonguinhas
Aterram no meu peito, desordenadamente
Saro vezes sem conta
Esta ferida doída, latejante
É
Às vezes dentro de nós faz sul.
Sempre
FÉRIAS
Apenas o sussurro da neve, na passagem
Pensamentos ausentes
A fixação na próxima curva
A inclinação e o balanço precisos
No risco sempre calculado
Em volta
Incendeiam-se cumes
Que apenas pressinto
Aqueço e aumento o ritmo
Inutilmente
Uma princesa pequenina
Voa no limite do meu olhar
Tranquila, certeira, harmoniosa.
Sei que vai esperar por mim
Com um riso traquinas
E um chocolate quente.
DE ONDE EU VENHO
Não há dunas de areia
Águas soltas no céu
Pingando gengibre e doce mel
Rios, sim.
De onde eu venho
Estremecem paludismos
Fogueiras devoram as noites
Desejos por saciar
Estalam ruidosamente os ossos do tempo
De onde eu venho
Há cabaças de kissangua e hidromel
Virgens parindo ternuras
Sede da terra
Rios velhos, sim.
De onde eu venho
Planam girassóis ao vento
Gestos de vidro e luz de mil cores
Amores alucinados
Carne viva.
De onde eu venho
Há imbondeiros preguiçando ao sol
Sombras voam na floresta
Faúlhas dançam no escuro
Rios novos, sim.
De onde eu venho
Há mulheres dilacerando os milhos
Borboletas azuis
Ritmos da memória antiga
Rios pedregosos, sim.
De onde eu venho
Jovens ensaiam juras de amor
Luares derramados nas copas
Serpentes prateadas, nevoeiro
Rios serenos, sim
De onde eu venho
Há meninos rindo, na casa do meio
Nuvens brancas, girassóis
Corpos sedentos, febris
Rios mágicos, sim
De onde eu venho
Kissanges e batuques perfumam a noite
Fogueiras e pirilampos
Palavras apenas sussurradas
Rios sem margens, sim
De onde eu venho
Acendem-se candeias ao jantar
Despem-se silêncios desiguais
Águas gordas, grávidas
Rios primevos, sim.
SEM RETORNO
Silêncios magoados
Corroem-me rios de lava
Por gestos que não cumpri.
Embacio os olhos
Sem retorno
CARLOS PAREDES
Calaram-se as guitarras do meu país.
Nunca mais os acordes dissonantes
Ouvidos na pessoa primeira.
Vejo-o solitário
Libertando os sons
Presos nas cordas da guitarra
Aos ombros transportava um sonho
Maior que ele, maior que todos nós
Cerzir, cerzir sem parar
Os alinhavos da alma portuguesa
Em Junho chegou-me a notícia
Não mais, tinha regressado aos pós
Não acreditei, não acredito.
Só morre quem merece
E
Se olharem com atenção, verão
Continua vagueando por aí
Cuidando da alma de todos nós.
NOITE VERTICAL
Rios oblíquos na vidraça
No arrasto do vento
Estendo um prumo, tocando o horizonte
Que a noite tem que ser vertical
Roçando o dia que vem.
FERA
Farrapos translúcidos na neblina
As aves, ainda ausentes de voos
Aquietavam-se nos ramos húmidos.
Um homem espreguiçava sonhos
Lentamente acordou nas tarefas matinais.
Assomou à porta
À orla da floresta.
TERRA MINHA
Sabes onde é?
Sabes como é o Cubal?
Não me respondeu, mas
Pegou numa folha de papel
E desenhou.
A verde, uns rabiscos de sisal
Com um lápis preto traçou o rio
Juro que vi os jacarés ao sol
E meninos tremendo de frio
Com o mesmo lápis traçou ao lado
Uma enorme serpente de ferro
Perdendo-se lá longe na mata
Dissolvida num cacimbo nublado.
Com todas as cores que arranjou
Desenhou o casario
E as acácias em flor.
A castanho fez uma estrada para norte
E um pouco à frente, a azul
Desenhou um pontinho
A medo, perguntei um pouco à sorte
Claro que é, não há lagoas a sul.
Voltou atrás e desenhou outra estrada
E, um pouco à frente
E logo depois
Fez uma casa que parecia abandonada
Nas árvores em redor, pôs levemente
Muitos bicos de lacre e zonguinhas
A toda a volta do desenho continuou
A rabiscar verde de vários tons
Disse-me
São as matas da tua infância
Onde tantas vezes te perdeste e
Encontraste.
Não vês os catuites e as rolas?
E aquela cabra de leque pastando?
Espera, ainda falta qualquer coisa
E desenhou a azul muito escuro
Nuvens densas e uma chuva bravia
Desculpa, mas não consigo desenhar
O cheiro doce que a terra trazia.
Esse, vais ter que ser tu a imaginar.
Como é possível, ver esse Cubal
Sem nunca lá teres estado?
Enganas-te
Toda a vida vivi rodeada de sisal
Conheci cada palmo nas tuas histórias
Sei de todos, todos os teus amigos
E todos eles vivem como tu
Enredados nas mesmas memórias.
PRECISO
De deixar para trás
Os girassóis que ardem
Na planície
E
Escalar
Este Everest dentro de mim
Olhar os sóis
Para lá do horizonte
Perder-me
No mar de estrelas
Navegar nos anseios
Perdidos.
Preciso
De atravessar as cordilheiras
E render-me
Às alturas abruptas
E ver
Os rios despenharem-se
Lá em baixo
Com os meus sonhos
De vidas anteriores
Preciso
De chegar ao cimo e,
Morrer de amor
E renascer.
MEMÓRIAS
Ouço-lhes os passos
Pisando levemente o chão.
Espreito
Sabendo-me já prisioneiro.
COMANDANTE
Para sempre
Presente
Raio de luz
Camarada
Comandante
Companheiro
Flor do Caribe
Condor
Do altiplano boliviano
Timoneiro
Guia
Leão africano
Orgulho da nossa geração
Poeta
Guerrilheiro
Irmão
A vida inteira
Alegria
Sofrimento
Caminheiro
De caminhos certos
Pegada
Miragem
Pó
Dos grandes desertos
Solidão
Tristeza
Dor
Uma lágrima no chão
Ausente
Para sempre
Presente
Eternamente
Che
ALMA (sobre um tema recorrente, do meu amigo Manuel!)
Fundeados
Ancorados
No fundo mais profundo
De nós
Carregando
Fantasias e alucinações
Sulcam
Doridos mares interiores
POEMA DE AMOR
Há muito tempo
Ela fixou o olhar em mim
Iris azul do oceano profundo
Soltaram-se colibris, e um aroma de jasmim
Falcões rasaram as ondas
As nuvens pingaram cristais
Brilharam estrelas na noite
Milhões delas, ou talvez mais
Dissolvi-me lentamente naquele olhar
As buganvílias explodiram em flor
Um grou solitário riscou o céu
Alguém fez uma declaração de amor
Houve crianças que sorriram
Um guerrilheiro enganou a morte
Os rios galgaram as margens
Um fraco tornou-se forte
Os rios correram ao contrário
Os alicerces do mundo tremeram
O pendulo sideral oscilou
E os furacões amansaram
Soltei o ar que retinha no peito
Estremeci de puro prazer
Enfeiticei-me pela dona do olhar
Caminhei decidido para o entardecer.
SOL DE ÁFRICA
Vermelho, incandescente
Dissolvendo-se vezes sem conta
No horizonte
Marcou-me para sempre a alma.
Ferida sempre doída
Nas sombras das casuarinas
E
No aroma das frutas.
Desespero ansiando
Pelo início das chuvas
E pelo cheiro da terra
Chaga aberta
Pela lembrança dos caminhos do mato
E da savana junto ao mar
Ferida sem alívio
O silêncio, em vez
Do rugido do leão
E os rios pedregosos
Sem jacarés.
A cicatriz que não vem
O desejo de abraçar imbondeiros
E de que os cacimbos
Me arrepiem a pele
Até chorar de dor.
Ferida dormente
Doendo a cada instante
Nas manhãs de bruma
E nos crepúsculos de sangue
Terra minha, onde estás?
IMBONDEIRO
Dos abençoados solos africanos
Ao desaparecermos do mundo
Estarão ainda por mais mil anos
Serenos e pacientes, já lá estavam
Na chegada da primeira nau marinheira
Invencíveis e imponentes lá ficaram
Quando desapareceu uma raça inteira
Sobranceiros continuam a observar
As tragédias e alegrias de um povo
Que apenas queria poder chegar
Às fundas raízes de um tempo novo
Erguem os braços aos céus, vigorosos
No silêncio fazem ouvir a sua voz
E nós continuamos todos, silenciosos
Aguardando um destino belo, ou atroz
Enormes, tão assustadores à luz do luar
A carne é branca, como a neve dos frios
Agridoce, para quem os consegue apanhar
Donos de todas as minhas emoções
Sempre foram bons companheiros
São árvores de angolanas tradições
São altivos, chamam-se imbondeiros.
O MEU PAÍS
Tenho uma caixa de lápis de cor
Com que pinto os sonhos.
Neste
Pego no lápis castanho escuro
E pinto duas muanhas altivas
Que passavam perto de mim.
Dou-lhes mais um pequeno toque
Para que se veja o andar
E para podermos ouvir
Os chocalhos amarrados na canela.
E tive que usar todos os tons
Para pintar as matas densas
Passei levemente por cima
O lápis cinzento
Como esquecer-me dos cacimbos
Que tantas vezes me arrepiaram a pele?
Lá ao longe dois morros de basalto
Cortam o horizonte da savana
Pinto-os com o lápis preto.
Com o lápis amarelo dourado
Pinto a imensa anhara
Onde tantas vezes me perdi
E me encontrei.
No meu sonho tinha chovido
Uma chuva bravia, poderosa
Desenhando alinhavos no pano da tarde
Aquele cheiro da terra depois da chuva
Não o pintei, não consegui
Afinal
De que cor se pinta o cio da terra?
Pintei o sol enorme de fim de tarde
E vi no mar
Por fim, com o lápis azul
Sempre o lápis azul
Coloquei no canto direito
A minha assinatura
Esperando, ansiando
Que gostem deste sonho.
Não o vendo, apenas o ofereço
Afinal,
Que preço pode ter o meu país?
OXALÁ
Fosse possível voar
Os sonhos fossem reais
A vida corresse devagar
A sorte sorrisse demais
Oxalá
A morte fosse só uma ideia
A dor só viesse depois
O corte não fosse na veia
Eu e tu não fossemos dois
Oxalá
Os rios nascessem no mar
Amigos não tivessem partido
As noites brilhassem ao luar
O coração nunca tivesse doído
Oxalá
A faca só tivesse um gume
O tiro não ferisse ninguém
As montanhas fossem só cume
A meta não ficasse tão além
Oxalá
Todas as manhãs fossem serenas
O pôr do sol fosse sempre lilás
Não houvesse ideias pequenas
Oxalá
CHUVAS DE SETEMBRO
Aviso de todos os calores
Rompendo céus negros
Grávidos de tanto liquido
Esmagam-se ruidosamente
Na pele engelhada da terra
E partem à desfilada doida
Arrastando tudo na corrente
Chuvas de Setembro
Relançando todos os milagres
Já julgados impossíveis
Cada gota trazendo sementes
De novas vidas prometidas
Alinhando o pendulo sideral
Com os passados e presentes
Chuvas de Setembro
Rápidas e fugazes
Dissolvendo-se de repente
No desmedido calor tropical
A certeza do diário regresso
Violentas, gordas, destruidoras
Reconstruindo a energia vital
EU SOU
O caminhante solitário
No meio da multidão
As cicatrizes da vida
E o bater do coração
Eu sou
Os rios que correm
E os desertos do mundo
O caminho das estrelas
O desejo que vem do fundo
Eu sou
Os olhos de todos os cegos
Mesmo dos que podem ver
O sabor doce do azedo
E o amargo do prazer
Eu sou
O pirilampo no escuro
E o barulho do trovão
A seiva das árvores
E o rugido do leão
Eu sou
O guerrilheiro que mata
A suave brisa do entardecer
O cheiro acre do medo
O aroma do capim a arder
Eu sou
Tudo o que quiser ser
Abel, Caim, Germano
Injusto, bom, assassino
Apenas um ser humano.
DEFINITIVAMENTE
Não me sinto
Meio-meio.
Não.
Não quero morar
Nessa encruzilhada.
E não posso chamar
Casa a esse lugar.
De alma velada
Olho para dentro de mim
Percorro o meu labirinto
E vejo,
Anharas, matas, savanas
e, um rio sem fim.
Explosões de cor
Ritmos, batuques,
Lindas mulheres africanas.
E vejo
Amigos, paixões, amor,
Saudade, Cubal,
Acácias rubras, morros.
E vejo,
Relâmpagos riscando o céu.
Chuva imensa, a jorros.
Cubal, Cubal, Cubal, meu
Não,
Não me sinto.
Sinto dentro uma dor
Funda, persistente,
Um lobo feroz, guerreiro,
De mim, caçador.
Inutilmente.
Lamento mas não,
Não me sinto
Meio-meio.
Sinto-me africano.
Inteiro.
TRÊS SEGUNDOS
(Este poema dura em média cerca de 45 segundos a ler).
Em cada três segundos morre um menino
Evaporam-se em fome, doença ou solidões
Neste preciso instante já morreram três
Para estes jamais poderá haver soluções.
Os dedos da mão estalam em ritmos loucos
Um morto, outro desiste, outro vai embora
Alucinados vagueiam na global indiferença
De um drama, que em cada dia não melhora
Dia mundial, da fome, da criança, do amor
Da paz e de múltiplas outras solidariedades
Já se exilaram sem retorno, mais outros três
Destroços inúteis na casa azul da liberdade
Ausência, medo, pavor, peso de vergar almas
Nunca, nunca mais, outros três lindos sorrisos
Os meus olhos rasam-se em oceanos de dor
Por tantos, tantos meninos vivendo indecisos
As manhãs do nosso futuro, desistem na noite
Outras três voaram para além das cordilheiras
Eram cientistas, ou carpinteiros, ou bailarinas,
Seriam adultos, vivendo as suas vidas inteiras.
Nunca mais será possível adormecer em paz
Sabendo que o tempo rola na escuridão fria
Mais três que partiram nos ventos diferentes
Fugiram e levaram com eles a nossa alegria
Corre por este rio de alucinações e maravilhas
Esta ausência, do pedaço de pão para todos nós
Desertaram mais três, esgotados de esperas vãs
Sinto-me, sentimo-nos todos, cada vez mais sós.
DRAGÕES
Sem espaço para solidões ou desesperos.
No calor das fogueiras queimam-se histórias de tempos antigos.
Pela frente, ainda tantas histórias para contar!
E SE ?...
Um dia, pudesse parar o tempo?
Se por instantes morresse a eternidade?
Se fosse possível ver a bala que se aproxima
Ou a lágrima que não cai, no rosto de uma criança
Um relâmpago congelado no céu
Uma catástrofe no último segundo
Um girassol tremendo de frio
Um milhafre incrustado no azul infinito
Uma mãe sorrindo para o filho
Isso mudaria alguma coisa cá dentro?
O nosso lobo ensaiaria recuos?
Se fosse possível parar uma valsa lenta
Ou ver um gesto de amor, fixado no tempo
Uma pedra aguardando um voo veloz
Um poema inacabado
Um corredor atingindo a meta
Um barco pousado no horizonte
Um nascimento prestes a acontecer
O nosso lobo ensaiaria recuos?
E se alguém, de repente
Um dia, pudesse parar o tempo?
DESTINO
Encurvo silêncios
Em forjas de luz
Aconchego átomos
Mensageiros de sóis distantes
E cristais de neve
Ecoando cumes gelados
Caminho na periferia da vida
Com vagabundos e loucos
E meretrizes alucinadas
Rios de prata serpenteiam a meus pés
Na corrente flutuam solidões e maravilhas
Aniquilando-se adiante
Em penhascos liquidos
Há um cheiro de gengibre no ar
E um oceano de tempo a separar-nos.
Ao longe
Um dia vertical
Crava-se na periferia da noite
Irremediávelmente
Dispo-me de tudo
Resta uma vibração
Espesso-me em nevoeiros
COMANDANTE CHARANA
Mas esta é a batalha maior
Maior que todos nós, sem vencedores
Contaram-me tantas histórias
De oceanos gelados e de outros tropicais
De gelos medonhos e sereias encantadas
Navegou todos os mares deste mundo
Nos temíveis mares árcticos
No fragor de montanhas abatendo-se
Nos grandes mares meridiões
Onde a água traça alinhavos na areia
Dono das tempestades
E de outras fúrias marinheiras.
Entre dois soluços do tempo
O último olhar liquido aos mares primeiros
Finalmente
Começou a grande viagem
Milhões de estrelas a balizar os rumos
E, a alumiar os caminhos que estão para vir
Viaje em paz, velho amigo.
Nós
Nós, sulcaremos os mares de novo
Mais confiantes agora.
Certos de que o Comandante nos protege
E nas intermináveis noites de acalmia
Continuaremos a contar e a ouvir
Tantas histórias fantásticas
Do velho marinheiro, dono das tempestades